Entronizada no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, cantora enfileira 65 músicas em roteiro que abarca sucessos que interpretava na noite carioca no início da década de 1970.
Ali estava – diante de plateia iluminada por luzes que permaneceram estranhamente acesas ao longo do show e formada somente por convidados – uma cantora que já transcendeu rótulos e gêneros musicais sem deixar de ser uma “voz do samba”, como foi apresentada ao Brasil em 1975 no título do primeiro álbum.
Voz grave, do time dos contraltos, que se tornou uma das mais perfeitas traduções da alma sentimental brasileira ao valorizar repertório que, partindo do samba, segue pelos ritmos nordestinos e sempre aporta nas baladas de romantismo despudorado e linguagem direta.
E foram baladas como Estranha loucura (Michael Sullivan e Paulo Massadas, 1987) e Ou ela ou eu (Flávio Augusto e Carlos Rocha, 1987) – trilhas sonoras afinadas com o enredo amoroso das Marias Bruacas da vida real que ainda enfrentam Brasil afora o domínio patriarcal da sociedade machista – que mais seduziram o público presente na gravação audiovisual de show especial que irá gerar álbum e DVD lançados pela Marrom Music em parceria com a gravadora Biscoito Fino.
Acomodada na cadeira que bem poderia simbolizar um trono, a maranhense Alcione reinou no palco do Municipal carioca ao resumir 50 anos de carreira, tomando-se como ponto de partida a edição em 1972 do primeiro single da cantora maranhense. Esse single apresentou Figa de guiné, música de Reginaldo Bessa e do então também debutante compositor Nei Lopes, bamba das letras que se tornaria nome recorrente na discografia da cantora.
Em medley com outro samba dos mesmos autores, Tem dendê (1973), Figa de guiné marcou presença em roteiro que aglutinou 65 músicas em 30 números, quantidade ainda assim insuficiente para abranger todos os sucessos da Marrom. Tanto que sambas como Sem perdão (Jorge Aragão, Nilton Barros e Sereno, 1981) e Noite pelo dia (Arlindo Cruz e Adilson Victor, 1982) foram ausências sentidas no farto roteiro – assim como Roda ciranda (Martinho da Vila, 1984) – por quem acompanhou com fidelidade a trajetória fonográfica de Alcione nesses 50 anos.
Com o toque da Orquestra Sinfônica Maré do Amanhã, harmonizada com a Banda do Sol regida pelo tecladista e diretor musical Alexandre Menezes, Alcione aliou à singularidade da voz – ouvida com a potência e a emissão permitidas pelos 74 anos festejados pela artista em 21 de novembro de 2021 – à musicalidade igualmente rara que se manifestou já na adolescência vivida na cidade natal de São Luís do Maranhão (MA).
Cantora e instrumentista, hábil no toque do trompete, Alcione já mostrou quem era no show nos breques do samba Eu sou a Marrom (Roberto Corrêa e Sylvio Son, 1978), espécie de cartão-de-visitas musical desta artista que caiu bem no suingue dos scats que adornaram o medley que aglutinou os sambas Primo do jazz (Magnu Souza e Nei Lopes, 2005) e Influência do jazz (Carlos Lyra, 1962).
Os scats reapareceram já no fim do show, como temperos que tornaram o suingue de Gostoso veneno (Wilson Moreira e Nei Lopes, 1979) ainda mais saboroso.
Orquestrado sob direção geral de Solange Dias Nazareth, irmã e empresária de Alcione, o show Alcione 50 anos teve o roteiro como um dos pontos altos. Os links das músicas por afinidades temáticas e/ou rítmicas resultaram azeitados e – cabe lembrar – a maior parte desse roteiro herdou a costura do show comemorativo dos 70 anos da artista, apresentado em 16 de dezembro de 2017 na casa Ribalta, no Rio de Janeiro (RJ), cidade que acolhe Alcione desde 1967.
Tanto o show de 2017 como o espetáculo de 2022 foram abertos com a música autobiográfica Resumo (Roberto Corrêa e Sylvio Son, 1980), com a diferença de que, na apresentação no Municipal, quem recitou os versos rimados de Resumo foi Maria Bethânia. Já os arremates de ambos os shows foram feitos com Não deixe o samba morrer (Edson Conceição e Aloísio Silva, 1975), espécie de samba-manifesto que adquire mais sentido conforme o tempo passa.
A passagem do tempo, aliás, foi o mote da reflexão existencial de Cajueiro velho (João Carlos Dias Nazareth, 1976), belo e melancólico tema de autoria do pai da artista.
Contudo, existiu um diferencial a favor do show dos 50 anos de carreira – e esse distintivo foram os arranjos. A combinação dos toques da Orquestra Sinfônica Maré do Amanhã com a pegada da Banda do Sol deu renovada no repertório. O arranjo de O pior é que eu gosto (Isolda, 1988), por exemplo, fez parecer que Alcione cantava a música em um salão dourado dos anos 1950 em que imperavam boleros e sambas-canções.
As interações dos sopros com as percussões geraram o balanço da viagem por ritmos do Maranhão feita no medley que agregou De Teresina a São Luís (João do Vale e Helena Gonzaga, 1990), Pedra de responsa (Chico César e Zeca Baleiro, 1996) e Tambor de crioula (Júnior e Oberdan Oliveira, 1975).
Entre escalas românticas para rebobinar sofrências irresistíveis para o público de Alcione, como Sufoco (Chico da Silva e Antonio José, 1978) e Você me vira a cabeça (Me tira do sério) (Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, 2001), a viagem pelo tempo e pelo Brasil do show Alcione 50 anos transitou pelos gêneros musicais que animam os forrós da Paraíba e de Pernambuco – representados pelo medley com Forrofiar (Luiz Gonzaga e João Silva, 1984) e Forró do Xenhenhem (Cecéu, 1985) – antes de aportar na Bahia na cadência do samba Ilha de maré (Walmir Lima e Lupa, 1977), ao qual se seguiu o ijexá Ara Ketu (Edil Pacheco e Paulo César Pinheiro, 1985).
Houve também a tradicional parada na Estação Primeira de Mangueira para Alcione cantar pot-pourri com sambas que exaltam a tradicional agremiação do Carnaval carioca, com direito à exibição do casal de Mestre-sala & porta-bandeira da escola verde-e-rosa e de dançarinos da Ballet Cia. Marcello Chocolate, em número fiel à estética já conhecida pelos frequentadores dos shows de Alcione.
E, por ser um show típico da Marrom, o roteiro de Alcione 50 anos rebobinou as homenagens aos cantores Emílio Santiago (1946 – 2103) e Clara Nunes (1942 – 1983) prestadas com os mesmos medleys do show de 2017.
E foi justamente por ter feito ontem o que sempre faz em cena que Alcione saiu consagrada, ovacionada, do palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O público tinha ciência de que estava diante de uma personalíssima cantora de música brasileira que resumia 50 anos de carreira vitoriosa em uma noite, ou em 65 músicas, com a certeza de que foi fiel à própria essência nas escolhas feitas ao longo dessas cinco décadas de trajetória profissional iniciada, antes da estreia em disco, nas boates cariocas.
A propósito, o medley poliglota com Grande grande grande (Alberto Testa e Tony Renis, 1971), Nostalgias (Enrique Cadícamo, e Juan Carlos Cobian, 1936) e Ton nom (Charles Aznavour, 1972) reiterou a fluência de Alcione no canto de músicas em idiomas como italiano, espanhol e francês, além de ter simbolizado a lembrança da cantora que debutou na noite carioca no alvorecer da década de 1970 antes de se projetar nacionalmente em 1975 como a voz do samba, se tornando uma cantora popular, hoje já transformada em entidade.